sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O MAL, O BEM E ALÉM


EGOÍSTAS E BONZINHOS ???

Uma trama diabólica. É assim que Flávio Gikovate, 63 anos, define a divisão do Mundo entre egoístas e generosos no livro O mal, o bem e mais além Sua experiência em consultório o fez perceber que quase todos os casais – e também as relações sociais e entre amigos – fundamentam sua relação nas trocas estabelecidas entre uma personalidade mais exigente, barulhenta e emocionalmente sensível e outra mais madura, compreensiva ao extremo. Divisão um tanto maniqueísta?

Gikovate diz que não. “A culpa não é minha se existem apenas dois tipos de pessoas”, afirma. A novidade presente no livro é que, segundo ele, os generosos não formam o time do bem, como julga o senso comum, nem os egoístas são os vilões.

Sua hipótese é de que as diferentes reações a sentimentos humanos, como vaidade, inveja, culpa e humilhação, acabam por determinar o perfil de cada indivíduo.

A miséria dos egoístas está no fato de que eles dependem dos generosos, assim como os generosos precisam dos egoístas. ISTOÉ – O que o levou a escrever sobre a velha dicotomia entre o bem e o mal? Flávio Gikovate – O tema da moral está presente há algum tempo em meu trabalho, mas antes tratava o egoísmo como algo pior do que a generosidade. Em 1976, escrevi que havia dois tipos de amor, por diferença e por semelhança.

A grande maioria dos casais se estabelecem entre pessoas antagônicas. Hoje, a moda é falar em alma gêmea, mas, na prática, as pessoas continuam se encantando por oposição e dizendo que os opostos se atraem. A atração por opostos tem muitas causas, desde a dificuldade de auto-estima (não gostar do seu jeito de ser e se encantar com o outro) até o medo da paixão, muito intensa, estabelecida entre semelhantes.

A paixão, diferentemente da maioria das relações, se dá entre pessoas parecidas. ISTOÉ – Por quê?Gikovate – Paixão é amor em grande intensidade mais medo em grande intensidade. O coração não bate por amor, mas por medo. E muita gente acha que, quando a paixão vai passando, é como se o amor diminuísse também. Apenas o medo diminui. Mas muitas paixões terminam quando os amantes não suportam o que chamo de medo da felicidade. Ele está na raiz do pensamento supersticioso. O olho gordo tem cinco mil anos. O medo da felicidade surge quando estamos no meio de muita coisa boa e temos a impressão de que um raio vai cair na nossa cabeça. Muitos preferem se unir a uma pessoa diferente de si para garantir um pouco de irritação. Ligar-se a uma pessoa antagônica encanta e irrita ao mesmo tempo.

Na paixão, as afinidades são enormes, os dois se encaixam maravilhosamente bem e o pânico se instala. As separações ocorrem por isso, e não por causa dos obstáculos.

ISTOÉ – Por isso a maioria dos casais é formada por um egoísta e um generoso?Gikovate – Entre dois egoístas, a relação é impossível. Acontecem muitas brigas. Não dá problema psiquiátrico, mas ortopédico (risos). Quando o egoísta é casado com um generoso, pelo menos este coloca panos quentes. Quase sempre, a paixão ocorre entre dois generosos que acabam deixando de ser generosos. Seriam casais perfeitos se o generoso, tão atrapalhado psicologicamente quanto o egoísta, aprendesse a receber.

ISTOÉ – Como são, afinal, os generosos e os egoístas? Gikovate – O egoísta é estourado, ciumento, gosta de fazer autopromoção, é extrovertido porque não consegue ficar sozinho e intolerante à frustração. Faz o diabo para não se frustrar, inclusive passar por cima dos direitos dos outros. A partir dos seis anos, a criança é capaz de abstrair e se colocar no lugar do outro. Se uma criança vê um menino em uma cadeira de rodas e se imagina em seu lugar, sofrerá com isso. E uma criança que não suporta essa dor interromperá esse processo. Fica com uma visão unilateral do mundo e perpetua um padrão egocêntrico. São pessoas invejosas, embora se mostrem sempre muito bem. Isso confunde até hoje os psicanalistas, que fundaram o conceito de narcisismo. ISTOÉ – O narcisismo não existe?

Gikovate – É um conceito usado para descrever pessoas que têm a postura do “eu sou bacana”, como se elas tivessem realmente esse juízo de si, o que não é verdade. Elas sabem que são um blefe. Fingem superioridade por se saberem invejosas e ciumentas. Elas precisam receber mais do que recebem. Matematicamente, são pessoas falidas. Podem botar a banca que for, mas são fracas.

ISTOÉ – E quem são os generosos e por que não devem ser encarados como representantes do bem?

Gikovate – O generoso é o inverso do egoísta. Não reage nem quando deveria, não suporta provocar dor na outra pessoa, aceita dócil um monte de contrariedade. Fala um monte de sim quando deveria falar não. Quando você tem oito anos e é um menino bonzinho e seu irmão começa a chorar porque quer uma bola que é sua, você não agüenta o remorso que imagina que vai sentir e dá a bola para ele. Mas não era isso que você queria fazer. Aí a mãe vem e diz que você é legal. O elogio estimula a vaidade, que se acopla à generosidade. É mais uma vez um truque para se sentir superior à custa de uma fraqueza. O generoso também inveja o egoísta, que é capaz de dizer não e goza os prazeres da vida, enquanto o generoso é todo cheio de pudores e constrangimentos. Acabam ficando duas porcarias.

ISTOÉ – A culpa é da sociedade que valoriza a concessão como virtude?

Gikovate – Para ter um filho bonzinho, tem que ter um filho pestinha. A mãe poderia chegar para o filho que quer a bola e dizer “não enche o saco, a bola é do seu irmão”. Mas ao reforçar a generosidade de um dos filhos, ela reforça também o egoísmo do outro. Não existe generosidade sem egoísmo. De vez em quando eu assisto a esses programas evangélicos na televisão e penso no que seria deles sem o Satanás. Não haveria programa. Essa dualidade é patética, ridícula. Para poder ser o bonzinho, o bacana, ir para o céu e ser uma teta na qual todos mamam, precisa haver os parasitas que vão lá mamar. Há uma aliança no domínio das elites entre o generoso e o egoísta. Comparo com o sacerdote e o guerreiro. O sacerdote seria o bonzinho e o guerreiro, o mau. Os dois sempre se freqüentaram e compartilharam poder.

ISTOÉ – Lula é mais parecido com o guerreiro ou com o sacerdote?

Gikovate – Por seu gênio e temperamento, Lula seria generoso. Mas uma vez no poder... Uma vez li uma entrevista de um filósofo francês que dizia que não existe esquerda no poder. Esquerda, por definição, é uma coisa que está fora do poder, gerando idéias. O poder não é lugar para idéias, mas um local de ação, onde as idéias geradas do lado de fora podem ser aproveitadas. A generosidade é praticamente impossível no poder. Lula é um governante que, como todos, precisa fazer alianças. E nem todos os amigos são generosos. As pessoas mudam de caráter com o passar dos anos e pioram.

ISTOÉ – O sr. ainda se refere ao Lula?

Gikovate – Não. Estou falando de maneira geral. Você já ouviu alguém dizer que quem não foi socialista na mocidade e virou um indivíduo pragmático aos 45 anos é um idiota. Como se o idealismo fosse um defeito juvenil que deve ser curado com o tempo até se transformar em egoísmo. Acredito que existe uma terceira instituição para além dessa dualidade. É um indivíduo moralmente sofisticado, nem egoísta nem generoso, que tolera bem a frustração e não sente culpas indevidas, que eu chamo de justo. ISTOÉ – Será o auge do individualismo?Gikovate – No bom sentido da palavra. Individualismo significa auto-suficiência. Egoísta e generoso não são auto-suficientes. O justo sim. Vai estabelecer relacionamentos nos quais não haverá necessidade de jogos de poder. Ele não dá mais do que recebe nem recebe mais do que dá. O interessante é que a sociedade moderna tende na direção do indivíduo justo. ISTOÉ – Não caminha para um mundo mais egoísta?Gikovate – Parece que sim, por causa do elogio a essa cultura superficial, ligada à vaidade e à aparência. Mas o fato é que não cabe todo mundo nesse sistema. Não há nem emprego para todos nem tetas suficientes. Quando penso em individualismo, comparo com o iPod. Você coloca centenas de músicas ali dentro e vai para o metrô, onde balança a um som que só você ouve. Dos dez milhões de habitantes de Nova York, três milhões moram sozinhas. São Paulo também é assim. Está se tornando o país dos cachorros. Se os generosos começarem a trocar seus pares egoístas por cachorros, será outro mundo. Até porque os cachorros retribuem. Ao vender iPods, os amantes da sociedade de consumo estão fabricando o germe da destruição do próprio capitalismo. O indivíduo que está mais auto-suficiente sozinho vai consumir menos, porque sua vaidade precisa menos de instrumentos externos. Estará mais perto da felicidade democrática e distante da felicidade aristocrática.

ISTOÉ – Qual a diferença?

Gikovate – Não dá para privilegiar coisas que não dão para todo mundo. Até os intelectuais cometem esse erro. Elementos de felicidade aristocrática, como a beleza, a riqueza e a inteligência, condenam à infelicidade o feio, o pobre, o que não teve acesso à educação. Sou favorável às felicidades democráticas, aquelas que dão para todo mundo, como o amor, por exemplo. O justo se satisfaz com isso. Ele não condena ninguém à infelicidade.

ISTOÉ – Como alcançar o mundo dos justos?

Gikovate – Todos têm que evoluir. As relações de qualidade serão as únicas estáveis, tanto as de amizade quanto as conjugais. E, quando a educação não parte de dois modelos concorrentes, os filhos saem todos legais. Além disso, é uma estupidez achar que casamentos sem brigas são tediosos. Só é chata a vida entre duas pessoas se elas forem chatas. O tédio deriva da falta de reciclagem por parte dos cônjuges. Mas não quer dizer que as disputas favoreçam a relação. ISTOÉ – Isso talvez derive da crença de que as disputas funcionam como estímulos sexuais para a maioria das pessoas.

Gikovate – Isso não é uma crença. O sexo está acoplado à agressividade em nossa cultura – ele faz parte do domínio do demônio – e se complica um pouco nas relações de boa qualidade. Na nossa cultura, há inveja sempre que existe diferença. Freud falou na inveja do pênis pelas meninas. Na adolescência, os meninos passam a invejar o poder atraente das garotas. Aí, as meninas se tornam objetos de desejo e os homens ficam babando. É a origem do machismo e das piadas em relação às mulheres. O machão tem raiva e desejo pela mulher. Isso não significa que não pode haver sexo sem ódio.

ISTOÉ – Caminhamos para isso?

Gikovate – Sim. O mundo moderno desvincula sexo de agressividade, apesar do sistema capitalista, que sonha com a infelicidade humana. A infelicidade dá dinheiro não só para os meus colegas (psicoterapeutas), mas também para a indústria. O ficar altera completamente essa relação de ódio e inveja. Na idade em que os meninos babavam pelas meninas, eles já as beijam. Pela primeira vez, um menino de 14 anos exerce sua sexualidade com alguém da mesma idade e da mesma classe social. Sem pagar. Os meninos não correm tão vorazes atrás das mulheres. Alguns pais às vezes trazem seus filhos para meu consultório com medo de que eles sejam homossexuais. “Não esquenta a cabeça, tio. Vai pintar”, dizem. Hoje, eles se dão ao direito de esperar que as meninas se aproximem. ISTOÉ – O generoso no ambiente conjugal pode ser egoísta nos negócios?Gikovate – Isso é raro. Mas o generoso é esperto. Ele faz alianças de alta conveniência. Associa-se aos egoístas, que fazem as maracutaias, e ele se beneficia. O sócio é um safado que faz negócios ilícitos, mas ele aproveita o dinheiro, sendo sempre o bonzinho. O generoso é um oportunista disfarçado. Dá uma casa bonita para a família mas mora nela. Diz que não se incomoda em morar em um “moquifo”, mas tem dificuldade de se separar e abrir mão da casa. É tudo espetáculo.

ISTOÉ – Por falar em espetáculo, Ronaldo e Cicarelli se encaixam no modelo? Gikovate – Olhando de fora, parecem dois egoístas que não agüentam ficar juntos mais do que serve aos interesses recíprocos. Talvez Ronaldo coloque mais seus interesses acima de tudo. Tenho a impressão de que a Milene (sua primeira mulher) era mais tolerante. Mesmo assim, ela não o agüentou. Daí ele arrumou uma que é da mesma categoria que ele. Três meses foi até muito. Não deu nem tempo de terem problemas ortopédicos (risos).


Flávio Gikovate é médico psiquiatra formado pela USP, autor de mais de 23 livros sobre conflitos psicológicos relacionados à vida cotidiana, tendo vendido mais de 600 mil exemplares. Foi colaborador da revista Claudia e da Folha de S. Paulo, e escreve para a revista Marie Claire. Ministra palestras pelo Brasil todo e continua em intensa atividade como psicoterapeuta.

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